quarta-feira, 13 de julho de 2011

ACORDE FINAL

"Eu havia colocado no toca-discos
aquele disco com poemas de Vinícius e
do Drumond, disco antigo, long-play, o
perigo são os riscos que fazem a agulha
saltar, felizmente até ali tudo tinha
estado liso e bonito, sem pulos e sem
chiados, o próprio Vinícius, na sua voz
rouca de uísque e fumo, havia recitado
os sonetos da separação, da despedida,
do amor total, dos olhos da amada.
Chegara finalmente o último poema,
meu favorito, "o haver" - o Vinícius
percebia que a noite estava chegando,
tratava então de fazer um balanço de
tudo o que se fez e disso, o que foi que
sobrou? Por isso as estrofes começam
todas com uma mesma palavra,
"resta..." - foi isso que sobrou.
Resta essa capacidade de ternura, essa
intimidade perfeita com o silêncio...
Resta essa vontade de chorar diante da
beleza, essa cólera cega em face da
injustiça e do mal entendido...
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
e essa pequenina luz
indecifrável a que às vezes os poetas
tomam por esperança...
Começava naquele momento a última
quadra, e de tantas vezes lê-la e outras
tantas ouvi-la, eu já sabia de cor as suas
palavras, e as ia repetindo dentro de
mim, antecipando a última, que seria o
fim, sabendo que tudo o que é belo
precisa terminar.
O pôr-do-sol é belo porque as suas
cores são efêmeras, em poucos
minutos não mais existirão.
A sonata é bela porque sua vida é curta,
não dura mais que vinte minutos. Se a
sonata fosse uma música sem fim é certo
que o seu lugar seria entre os
instrumentos de tortura do diabo, no
inferno.
Até o beijo... Que amante
suportaria um beijo que não terminasse
nunca?
O poema também tinha de morrer para
que fosse perfeito, para que fosse belo e
para que eu tivesse saudades dele,
depois do seu fim. Tudo o que fica
perfeito pede para morrer. Depois da
morte do poema viria o silêncio, o
vazio. Nasceria então outra coisa no seu
lugar: a saudade. A saudade só
floresce na ausência.
É na saudade que nascem os deuses -
eles existem para que o amado que se
perdeu possa retornar - que a vida seja
como o disco, que pode ser tocado
quantas vezes se desejar. Os deuses -
nenhum amor tenho por eles, em si
mesmos. Eu os amo só por isso, pelo seu
poder de trazer de volta para que o
abraço se repita. Divinos não são os deuses.
Divino é o reencontro.
A voz de Vinícius já anunciava o fim.
Ele passou a falar mais baixo.
Resta esse diálogo cotidiano com a
morte, esse fascínio pelo momento a vir,
quando, emocionada, ela virá me abrir
a porta como uma velha amante...
E eu, na minha cabeça,
automaticamente me adiantei, recitando
em silêncio o último verso: ".. Sem
saber que é a minha mais nova
namorada."
Foi então que, no último momento, o
imprevisto aconteceu: a agulha pulou
para trás, talvez tenha achado o poema
tão bonito que se recusava a ser uma
cúmplice do seu fim, não aceitava a sua
morte, e ali ficou a voz morta do
Vinícius repetindo palavras sem
sentido: "sem saber que é a minha mais
nova"..."sem saber que é a minha mais
nova"... "sem saber que é a minha mais
nova..."
Levantei-me do meu lugar, fui até ao
toca-discos, e consumei o assassinato:
empurrei suavemente o braço com o
meu dedo, e ajudei a beleza a morrer,
ajudei-a a ficar perfeita. Ela me
agradeceu, disse o que precisava dizer,
sem saber que é a minha mais nova
namorada... Depois disso foi o silêncio.
Fiquei pensando se aquilo não era uma
parábola para a vida, a vida como uma
obra de arte, sonata,
poema,coreográfico. Já no primeiro
momento quando compositor, ou o poeta
ou o dançarino preparam a sua obra, o
último momento já está em gestação. É
bem possível que o último verso do
poema tenha sido o primeiro a ser
escrito por Vinícius. A vida é tecida
como as teias de aranha: começam
sempre do fim. Quando a vida começa
do fim ela é sempre bela por ser
colorida com as cores do crepúsculo.
Não, eu não acredito que a vida
biológica deva ser preservada a
qualquer preço.
"para todas as coisas há o momento
certo. Existe o tempo de nascer e o
tempo de morrer" (eclesiastes 3, 1s).
A vida não é uma coisa biológica. A
vida é uma entidade estética. Morta a
possibilidade de sentir alegria diante do
belo, morreu também a vida, tal como
Deus no-la deu - ainda que a
parafernália dos médicos continue a
emitir seus bips e a produzir
ziguezagues no vídeo.
A vida é como aquela peça. É preciso
terminar.
A morte é o último acorde que diz: está
completo. Tudo o que se completa
deseja morrer".

(by: Rubem Alves).